1. Princípios fundamentais da
Igreja. O filósofo e teólogo suíço Hans Urs von Balthazar (1905 - 1988)
procurou responder à pergunta: quais são as dimensões fundamentais da Igreja?
Isto é, qual é o seu perfil, o que pertence à sua natureza? Para apresentar as
intuições de sua reflexão, o sacerdote irlandês Brendan Leahy escreveu
recentemente o livro: O PRINCÍPIO
MARIANO NA IGREJA, traduzido para o português e publicado, em 2005, pela
Cidade Nova.
2. Princípios constitutivos da
Igreja. Estudando a vida das primeiras comunidades cristãs, von Balthazar
identificou quatro princípios que constituem a estrutura fundamental da Igreja:
o princípio petrino, o princípio paulino, o princípio joanino e o princípio
jacobita. O teólogo suíço concluiu, porém, que a Igreja tem também um outro
princípio, que abraça esses quatro: o princípio mariano. Segundo ele, esse
princípio diz respeito àquela dimensão da Igreja que continua e ressoa o sim de
Maria a Deus. “É um sim repetido por todo o povo de Deus – leigos e clero – e
ecoa por meio deles. (...) No princípio da aventura evangélica, ele depara-se
com a Mulher do Evangelho na pequena casa de Nazaré, onde todo o cristianismo
encontra, por assim dizer, sua centelha inspiradora” (p. 14). É preciso, pois,
olhar para essa mulher, verdadeiro modelo para todos.
2.1
- Princípio petrino: é o mais conhecido; lembra a figura de Pedro.
Referir-se a Pedro é direcionar o pensamento para a proclamação do querigma e
sua realização concreta na vida cristã. “A continuação da missão de Pedro tem a
ver com o Credo pregado de maneira ordinária em todo o mundo mediante o
ministério pastoral. É a dimensão hierárquica e institucional da Igreja, que
representa a dimensão “objetiva” de santidade” (p. 74).
2.2
- Princípio paulino: “é ligado ao caráter missionário de Paulo, o apóstolo
dos gentios, aquele que se tornou cristão por pura graça, sem méritos e obras,
rompendo irremediavelmente com o passado. Podemos ver a missão de Paulo
continuar na irrupção vinda do alto, imprevista e sempre nova, de novos
carismas na história da Igreja. É um princípio profético e celeste, no qual
estão implicados os grandes carismas missionários, as grandes conversões, as
grandes visões com que a Igreja é brindada pelas palavras ditadas pelo
Espírito” (p. 75).
2.3
- Princípio joanino: “João é o discípulo predileto, o evangelista do
Mandamento Novo”. A missão de João é uma missão de unidade. “Essa dimensão da
Igreja é encarnada por todos aqueles que vivem os conselhos evangélicos e cuja
missão é o amor contemplativo: eles comunicam a mensagem de que, no amor, tudo
é possível” (p. 75).
2.4
- Princípio jacobita: é baseado em Tiago, que parece ter ocupado o lugar de
Pedro quando este deixou Jerusalém (At 12,17). “No Concílio dos Apóstolos ele
conduziu a moção decisiva para a reconciliação entre cristãos, judeus e gentios
(At 15,13-21). Ele representa, sobretudo, a continuidade entre a Antiga e a
Nova Aliança, representa a Tradição, a legitimidade da letra da Lei contra um
espiritualismo puro. (...) É aquela dimensão eclesial que afirma o sentido
histórico das coisas, a continuidade, a Tradição, o direito canônico. Esse
princípio é personificado naquelas pessoas cuja missão é recordar a necessidade
de estarmos ancorados na primeira experiência e a importância de retornarmos às
origens da nossa história cristã para reencontrar nova luz para continuar” (p.
77).
Cada um desses princípios permanece na Igreja; não se trata de
princípios isolados, pois cada um deles participa de todos os outros.
2.5
- Princípio mariano: Maria personifica a Igreja. Ela “é a mãe que gerou o
Verbo, de quem a Igreja nasce, e é esposa que coopera com Cristo no evento da
Redenção. Maria é, portanto, aquele princípio da Igreja que abraça tudo” (p.
76). Nesse princípio, todos os demais perfis da Igreja encontram sua
unidade.
Se cada um dos quatro primeiros princípios fosse absoluto, seria uma
perda para a Igreja. Dominando o elemento jacobita, baseado na importância da
lei e da Tradição, acabaríamos fundamentalistas, apegando-nos a formas
obsoletas; se o mesmo acontecesse com a dimensão petrina, a Igreja passaria a
ser vista como uma mera organização; caso prevalecesse a característica paulina
da liberdade do Espírito, seria considerado importante aquele que fosse popular
e que estivesse na moda; o domínio do princípio joanino daria como consequência
a busca do amor como “experiência” e uma atenção unilateral questões sociais
(cf. p. 156).
Existe uma “tensão” permanente na
vida da Igreja, pois esses quatro princípios precisam coexistir. Mas é
justamente essa a missão de Maria na Igreja: uni-los. É em Maria que se
articulam e se unem os diversos princípios da vida da Igreja, pois foi nela que
Deus voltou seu olhar para o mundo e se revelou como Trindade (cf. pp.
156-157).
3.
Os mistérios de Maria e sua espiritualidade. Se Maria é o princípio que une
os demais, o que seria essencial nela? Para responder a essa pergunta,
precisamos contemplar os doze mistérios de Maria que, para von Balthasar, são
como que “estrelas”do céu (pp. 79-80):
1. A
Anunciação (Lc 1,26-38)
2. A
gravidez (Lc 1; Mt 1)
3. A
visita a Isabel e o canto do Magnificat (Lc
1,39-56)
4. O
nascimento de Nosso Senhor (Mt 2,1-12; Lc 2,1-20)
5. A
apresentação no Templo (Lc 2,21-40)
6. A
fuga para o Egito (Mt 2,13-23)
7. O
reencontro de Jesus no Templo (Lc 2,41-52)
8. As
bodas de Caná (Jo 2,1-11)
9. A
rejeição de Maria e dos irmãos (Mt 12,46-50; Mc 3,31-35; Lc 8,19-21)
10. A
bênção dos fiéis (Lc 11,28)
11. Maria
aos pés da cruz (Jo 19,25-28)
12. Maria
em oração com a Igreja (At 1,14)
4. A espiritualidade das
espiritualidades. Para von Balthasar, a “espiritualidade das
espiritualidades”na Igreja é mariana – entendendo-se espiritualidade cristã
como um modo de viver. “A vocação de cada cristão e da Igreja inteira é – por
assim dizer – “viver” Maria em sua transparência para com Cristo, a ponto de se
poder afirmar: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl
2,20). A espiritualidade mariana tem a ver com o deixar que Cristo se forme em
nós, por obra do Espírito Santo. A espiritualidade pessoal de Maria está
centrada no seu sim transparente a Deus, e é esse o elemento comum a todos na
Igreja, antes mesmo da diferenciação das espiritualidades específicas” (p.
191-192). Isso implica três dimensões fundamentais:
4.1 - Abertura ao mistério do
amor de Deus: isto é, disponibilidade diante de qualquer coisa que Deus
queira. “Esse é o ponto fundamental da espiritualidade cristã – saber e crer
que Deus nos escolheu e amou, e que nós podemos escolhê-lo respondendo ao seu
chamado. É o nosso sim a Deus dia após dia” (p. 192), ficando feliz, como
Maria, com tudo o que o Senhor dispor para nós.
4.2 - Resposta à Palavra: “a espiritualidade de Maria está
centrada na Palavra que se faz carne, que se faz Eucaristia, que se faz
Igreja... Viver essa espiritualidade significa colocar em prática a Palavra de
Deus, a ponto de participar em nossa vida cotidiana da kénosis de Cristo na cruz, construindo assim a comunhão da Igreja”
(p. 192).
4.3 - Uma existência materna e “cristófora”: Maria é a Theotókos. Ela
carrega Deus. Podemos descrever sua vida como “uma existência cristófora”. Cada
pessoa que recebeu o batismo foi escolhida e chamada para deixar que Cristo
seja gerado em si e para levar Cristo Ressuscitado aos outros. Viver essa
“existência cristófora” implica viver alguns elementos-chave da espiritualidade
de Maria: a escuta do Espírito Santo, o amor ao próximo, à Eucaristia e à
Igreja (cf. pp. 192-193).
5.
Mãe da Igreja. A vida de Maria é feita de oração e
contemplação. Sua contemplação nada tem de fuga ou de um fechar-se em si mesma,
mas é uma atitude de vida essencialmente social, porque seus frutos revertem em
benefício para toda a Igreja (cf. p. 193). Compreende-se, pois, o título que a
Mãe de Jesus recebeu do Papa Paulo VI, no final da 3ª Sessão do Concílio
Vaticano II (21.11.1964): Mãe da Igreja:
“Para glória da Virgem e para nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima «Mãe
da Igreja», isto é, de todo o Povo de Deus, tanto dos fiéis como dos pastores,
que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que com este título suavíssimo seja
a Virgem doravante honrada e invocada por todo o povo cristão. Trata-se,
veneráveis irmãos, de um título que não é novo para a piedade dos cristãos;
porque antes é justamente com este nome de Mãe, de preferência a qualquer
outro, que os fiéis e a Igreja toda costumam dirigir-se a Maria. Em verdade,
ele pertence à genuína substância da devoção a Maria, achando sua justificação
na própria dignidade da Mãe do Verbo Encarnado. (...) Auguramos, pois, que, com
a promulgação da Constituição sobre a Igreja, selada pela proclamação de Maria
Mãe da Igreja, isto é de todos os fiéis e pastores, o povo cristão se dirija à
Virgem santa com maior confiança e ardor, e a ela tribute o culto e a honra que
lhe competem.”
6. A “noite
escura” da humanidade. Von Balthasar, constatando o humanismo ateu do mundo
contemporâneo, retoma um tema de S. João da Cruz – o da “noite escura”- e
conclui: estamos vivendo numa época caracterizada pela “noite escura coletiva”
(cf. p. 226), na qual predomina o racionalismo, isto é, uma cultura envolvida
pelo materialismo, pela busca do fazer e do ter. A humanidade precisa se
debruçar, novamente, sobre o mistério dos desígnios de Deus. Maria, “a
humanidade realizada e o cumprimento da Criação” (p. 228); a primeira
discípula, a mãe de Cristo Crucificado e Ressuscitado; Maria, a mãe da Igreja,
pode, como ninguém, inspirar a humanidade nesse momento, pois ela dá testemunho
do primado do amor – amor recebido, correspondido e repartido.
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de
Florianópolis
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